sábado, 20 de abril de 2013

"1984" ou "Admirável Mundo Novo"?




Desde que estou a estudar neste mestrado já ouvi falar dezenas de vezes do "1984" de George Orwell. Obviamente a magnitude das transformações em curso, nas nossas formas de comunicar e nas nossas formas de nos relacionarmos socialmente, induz visões utópicas ou distópicas da realidade.
Mas não é isso que me ocupa agora. Esta questão voltou a ocupar-me esta semana à medida que via, à distância e sem o acompanhamento que merece, a forma como as redes sociais e o "user generated-content" foi usado na investigação (e captura) dos suspeitos do antentado de Boston. Isso fez-me lembrar aquela notável frase acima (que li pela primeira vez num trabalho de primeiro semestre de um colega sobre as questões da vigilância), uma desconstrução de Mark Miller sobre a célebre frase de George Orwell (provavelmente uma das frases mais famosas do Mundo): "Big Brother is watching you!".
Como a investigação de Boston demonstra à evidência, o verdadeiro potencial de vigilância não é externo à sociedade; é interno a ela. Não será imposto de fora para dentro; será imposto de dentro para fora!  O "Big Brother", realmente, se alguma vez existir (porque às vezes esquecemo-nos que as distopias são tão credíveis como as utopias...), será o conjunto dos cidadãos a controlarem o conjunto dos cidadãos.
Por isso é que eu acho que, se as pessoas que estudam comunicação e sociedade quiserem realmente servir-se de uma distopia, a escolha certa não é o "1984" do George Orwell; é o "Admirável Mundo Novo" do Aldous Huxley (aliás, se quiserem ver o Gattaca, também poderão tirar alguns "ensinamentos" interessantes). A vantagem do "Admirável Mundo Novo" sobre o "1984" é que o segundo é feito de fora para dentro, um escritor olha para a sociedade e recobre-a com a sua visão distópica da sua evolução; enquanto o primeiro é feito de dentro para fora, a distopia é enredada no próprio tecido da sociedade. Talvez seja uma heresia literária, mas o que me parece é que "1984" é um objecto literário enquanto o "Admirável Mundo Novo" é um objecto científico. Onde num existe literatura, no outro existe ciência. Por isso é que o segundo seria uma melhor distopia para invocar num mestrado de comunicação e sociedade.
Aliás, só ao pesquisar para este post é que percebi que Neil Postman, um investigador que já citei por várias vezes no primeiro semestre, já se tinha apercebido há muito desta fundamental diferença entre Huxley e Orwell (ou, mais correctamente, entre o "1984" e o "Admirável Mundo Novo"). Diz ele, em "Amusing Ourselves to Death"
What Orwell feared were those who would ban books. What Huxley feared was that there would be no reason to ban a book, for there would be no one who wanted to read one. Orwell feared those who would deprive us of information. Huxley feared those who would give us so much that we would be reduced to passivity and egotism. Orwell feared that the truth would be concealed from us. Huxley feared the truth would be drowned in a sea of irrelevance. Orwell feared we would become a captive culture. Huxley feared we would become a trivial culture, preoccupied with some equivalent of the feelies, the orgy porgy, and the centrifugal bumblepuppy. As Huxley remarked in Brave New World Revisited, the civil libertarians and rationalists who are ever on the alert to oppose tyranny "failed to take into account man's almost infinite appetite for distractions." In 1984, Orwell added, people are controlled by inflicting pain. In Brave New World, they are controlled by inflicting pleasure. In short, Orwell feared that what we fear will ruin us. Huxley feared that our desire will ruin us.
Obviamente, a ideia de pôr os cidadãos (e os seus telemóveis, as suas câmaras, a suas fotografias) à procura de um criminoso, qualquer que ele seja, é muito assustadora.  E este caso de Boston merece um estudo profundo (que, não tenho dúvidas, alguém do MIT estará a preparar!) nesse aspecto, pois pode ser um case-study com alguns elementos inéditos.
Mas aquilo se inscreve na sociedade será sempre mais importante do que aquilo que se inscreve sobre ela. É essa a lição que Huxley nos dá e é por isso que as suas "previsões" podem ser muito mais úteis em termos científicos do que as do "1984" de Orwell. Se querem uma distopia (???), escolham esta!