quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Liquid life » Liquid media » Liquid surveillance

 Este conceito de David Lyon - "Liquid surveillance" - é muito interessante e está bem explicado nesta interessante palestra o no livro com o mesmo título. Para Lyons, a cultura de vigilância que se está criar hoje em dia propaga-se - como um líquido viscoso - a todas as facetas do quotidiano.
O que me chamou à atenção foi que a mesma ideia de uma propagação líquida é expressa por Mark Deuze a propósito dos novos media e das implicações que eles podem ter no trabalho dos jornalistas. Deuze fala de "liquid media" e de "liquid work" como a forma certa de interagir com eles do ponto de vista dos jornalistas (algo que - como e notório! - ainda muito poucos jornalistas perceberam). Obviamente ambos vão buscar o conceito ao filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, que fala de "liquid life" para a considerar um dos traços distintivos da modernidade.
Eu acho que aquilo a que eles chamam "liquid... all" é afinal uma manifestação da "pervasiveness" das novas tecnologias de informação e comunicação. O próprio conceito de "pervasiveness" não é fácil de traduzir e a aproximação de "ubiquidade"  [se alguém conhecer alguma tradução melhor, sou todo ouvidos!] não lhe faz justiça, porque não inclui a ideia de que é algo que "se imiscui" naquilo que toca. "Ubíquo" é algo que está presente em todo o lado; "pervasive" é algo que se "cola", que se "imiscui", que se integra em tudo o que nos rodeia. Aquilo que é ubíquo tem limites definidos; aquilo que é pervasive não tem limites definidos.
Eu percebo porque é que a ideia de uma "liquid life", "liquid media" ou "liquid surveillance" ganhou tracção no estudo destas matérias. Por oposição a uma natureza física, a natureza líquida é mais flexível, propaga-se mais facilmente, recobre os objectos e os seres. Mas, desse ponto de vista, porque não a metáfora do gasoso? Não seria mais adequada? O que acontece - parece-me... - é que a ideia de uma realidade líquida permite ainda assim perceber os limites das coisas, permite "ver" onde elas começam e onde elas acabam (para além de "liquid" dar melhores títulos que "gaseous"...).
Mas a verdade é que é mesmo isso. A metáfora certa seria "gasoso" e não "líquido"! Desde o telégrafo que a informação se transmite pelo ar. É "airborne". Os seus limites não são visíveis e muitas vezes não são determináveis. E isso claro que assusta. Sobretudo a capacidade de análise dos académicos. Mas cruze-se a informação "gasosa" com o digital e portanto com a computação (computação quântica,  já agora...) e teremos uma compreensão bastante aproximada de porque razão as tecnologias de informação e comunicação são "líquidas" e porque razão isso se reflecte na nossa vida social, no nosso trabalho, nos media, e também na vigilância. Porque não devemos esquecer - como muitas vezes fazemos - que informação é inteligência em estado de bit. Quando cruzamos informação com computação e a propagamos em estado fluído (líquido ou gasoso) ou em forma quântica, a "inteligência" recobre, naturalmente, todos as facetas da nossa vida individual e colectiva. Mas isso é outra discussão... to be continued.
Seja como for, os conceitos de Bauman, Deuze e  Lyon estão no caminho certo e são profícuos em termos das pistas de investigação que deixam para quem nelas quiser pegar. O que é importante compreender é que, nos tempos que correm, os media, o trabalho nos media e a vigilância - entre outras coisas - não podem senão ser estudados na sua natureza fluída. Ou seja, não podem (bem, podem, mas é um desperdício) ser estudados nos quadros sujeito/objecto (ou mesmo agente/agenciado) tradicionais. É por isso que o conceito de "conteúdo" é tão descabido, assim como todos os conceitos derivados, como o de propriedade do conteúdo. O mundo fluido da informação digital impõe uma outra abordagem. O mesmo, penso eu, se aplica ao estudo da vigilância.

E esse é o outro ponto que gostaria de abordar: no video citado acima, David Lyon vai no caminho certo ao notar que os mecanismos e ferramentas de vigilância estão cada vez mais incorporados e incorporadas nos media que usamos e na forma como os usamos. E que muitas vezes a vigilância (intencional ou inadvertida) parte de nós e não de entidades externas. Mas - parece-me - não tira a consequência lógica que essa abordagem impõe: os estudos de vigilância precisam de abandonar o paradigma de que alguém escuta e alguém é escutado. A informação fluída .. flui. E nalgum ponto desse fluxo, ela pode interessar a alguém, solta ou agregada. Combinada ou descombinada. Essa fluidez põe em causa o papel de quem escuta e de quem é escutado como põe em causa também - como sugeri atrás - os papéis de agente e agenciado. Em todas as facetas da comunicação moderna e portanto também no estudo da vigilância. Como é que coloca em causa esses papéis (compreendo bem as consequências cientificas do que está dito!) não sei e penso que deve ser estudado. Precisamente!
Por isso é me parece que a parábola preferida (e tantas vezes repetida)  dos estudiosos da vigilância - o "1984" de George Orwell - falha a percepção essencial do carácter líquido das novas formas de vigilância. E por isso é que, como já escrevi aqui antes, me parece que o modelo mais adequado para simbolizar o mundo em que vivemos seria o do "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley. As modernas tecnologias de informação e comunicação não estão ao serviço de uma ou mais entidades externas. Elas estão literalmente "agarradas" à vida quotidiana e é nesse contexto que devem ser estudadas. Em Orwell as tecnologias de informação e comunicação - que são tecnologias de dominação, como sempre foram - são uma ferramenta ao serviço de uns para vigiar outros. Sujeito e objecto são entidades separada. Um é agente o outro é agenciado. Em Huxley, pelo contrário, as tecnologias de informação estão integradas no tecido social e na vivência quotidiana dos indivíduos. E depois podem ou não ser apropriadas por entidades externas. Como são. Mas não nos devemos esquecer que também podem ser apropriadas pelos próprios indivíduos. Precisamente porque são fluídas  Por isso é que, quando se dá o exemplo de Edward Snowden para demonstrar o perigo dessa apropriação no quadro da big data, o mesmo Snowden serve de exemplo de como os indivíduos podem exercer o mesmo poder usando precisamente as mesmas ferramentas. Como Manning também ilustra cabalmente.
Percebo muito bem as inquietudes que estão na base da maioria dos estudos de vigilância. Há matérias que devem ser estudadas porque a multiplicação das tecnologias de informação e comunicação levanta questões profundas e de resposta difícil. Mas - creio - não serve de nada estudá-las ou analisá-las num quadro estático. Isso só será útil se tiver em conta o carácter líquido das apropriações sociais das novas tecnologias de informação e comunicação.