Este conceito de David Lyon - "Liquid surveillance" - é muito interessante e está bem explicado nesta interessante palestra o no livro com o mesmo título. Para Lyons, a cultura de vigilância que se está criar hoje em dia propaga-se - como um líquido viscoso - a todas as facetas do quotidiano.
O que me chamou à atenção foi que a mesma ideia de uma propagação líquida é expressa por Mark Deuze a propósito dos novos media e das implicações que eles podem ter no trabalho dos jornalistas. Deuze fala de "liquid media" e de "liquid work" como a forma certa de interagir com eles do ponto de vista dos jornalistas (algo que - como e notório! - ainda muito poucos jornalistas perceberam). Obviamente ambos vão buscar o conceito ao filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, que fala de "liquid life" para a considerar um dos traços distintivos da modernidade.
Eu acho que aquilo a que eles chamam "liquid... all" é afinal uma manifestação da "pervasiveness" das novas tecnologias de informação e comunicação. O próprio conceito de "pervasiveness" não é fácil de traduzir e a aproximação de "ubiquidade" [se alguém conhecer alguma tradução melhor, sou todo ouvidos!] não lhe faz justiça, porque não inclui a ideia de que é algo que "se imiscui" naquilo que toca. "Ubíquo" é algo que está presente em todo o lado; "pervasive" é algo que se "cola", que se "imiscui", que se integra em tudo o que nos rodeia. Aquilo que é ubíquo tem limites definidos; aquilo que é pervasive não tem limites definidos.
Eu percebo porque é que a ideia de uma "liquid life", "liquid media" ou "liquid surveillance" ganhou tracção no estudo destas matérias. Por oposição a uma natureza física, a natureza líquida é mais flexível, propaga-se mais facilmente, recobre os objectos e os seres. Mas, desse ponto de vista, porque não a metáfora do gasoso? Não seria mais adequada? O que acontece - parece-me... - é que a ideia de uma realidade líquida permite ainda assim perceber os limites das coisas, permite "ver" onde elas começam e onde elas acabam (para além de "liquid" dar melhores títulos que "gaseous"...).
Mas a verdade é que é mesmo isso. A metáfora certa seria "gasoso" e não "líquido"! Desde o telégrafo que a informação se transmite pelo ar. É "airborne". Os seus limites não são visíveis e muitas vezes não são determináveis. E isso claro que assusta. Sobretudo a capacidade de análise dos académicos. Mas cruze-se a informação "gasosa" com o digital e portanto com a computação (computação quântica, já agora...) e teremos uma compreensão bastante aproximada de porque razão as tecnologias de informação e comunicação são "líquidas" e porque razão isso se reflecte na nossa vida social, no nosso trabalho, nos media, e também na vigilância. Porque não devemos esquecer - como muitas vezes fazemos - que informação é inteligência em estado de bit. Quando cruzamos informação com computação e a propagamos em estado fluído (líquido ou gasoso) ou em forma quântica, a "inteligência" recobre, naturalmente, todos as facetas da nossa vida individual e colectiva. Mas isso é outra discussão... to be continued.
Seja como for, os conceitos de Bauman, Deuze e Lyon estão no caminho certo e são profícuos em termos das pistas de investigação que deixam para quem nelas quiser pegar. O que é importante compreender é que, nos tempos que correm, os media, o trabalho nos media e a vigilância - entre outras coisas - não podem senão ser estudados na sua natureza fluída. Ou seja, não podem (bem, podem, mas é um desperdício) ser estudados nos quadros sujeito/objecto (ou mesmo agente/agenciado) tradicionais. É por isso que o conceito de "conteúdo" é tão descabido, assim como todos os conceitos derivados, como o de propriedade do conteúdo. O mundo fluido da informação digital impõe uma outra abordagem. O mesmo, penso eu, se aplica ao estudo da vigilância.
E esse é o outro ponto que gostaria de abordar: no video citado acima, David Lyon vai no caminho certo ao notar que os mecanismos e ferramentas de vigilância estão cada vez mais incorporados e incorporadas nos media que usamos e na forma como os usamos. E que muitas vezes a vigilância (intencional ou inadvertida) parte de nós e não de entidades externas. Mas - parece-me - não tira a consequência lógica que essa abordagem impõe: os estudos de vigilância precisam de abandonar o paradigma de que alguém escuta e alguém é escutado. A informação fluída .. flui. E nalgum ponto desse fluxo, ela pode interessar a alguém, solta ou agregada. Combinada ou descombinada. Essa fluidez põe em causa o papel de quem escuta e de quem é escutado como põe em causa também - como sugeri atrás - os papéis de agente e agenciado. Em todas as facetas da comunicação moderna e portanto também no estudo da vigilância. Como é que coloca em causa esses papéis (compreendo bem as consequências cientificas do que está dito!) não sei e penso que deve ser estudado. Precisamente!
Por isso é me parece que a parábola preferida (e tantas vezes repetida) dos estudiosos da vigilância - o "1984" de George Orwell - falha a percepção essencial do carácter líquido das novas formas de vigilância. E por isso é que, como já escrevi aqui antes, me parece que o modelo mais adequado para simbolizar o mundo em que vivemos seria o do "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley. As modernas tecnologias de informação e comunicação não estão ao serviço de uma ou mais entidades externas. Elas estão literalmente "agarradas" à vida quotidiana e é nesse contexto que devem ser estudadas. Em Orwell as tecnologias de informação e comunicação - que são tecnologias de dominação, como sempre foram - são uma ferramenta ao serviço de uns para vigiar outros. Sujeito e objecto são entidades separada. Um é agente o outro é agenciado. Em Huxley, pelo contrário, as tecnologias de informação estão integradas no tecido social e na vivência quotidiana dos indivíduos. E depois podem ou não ser apropriadas por entidades externas. Como são. Mas não nos devemos esquecer que também podem ser apropriadas pelos próprios indivíduos. Precisamente porque são fluídas Por isso é que, quando se dá o exemplo de Edward Snowden para demonstrar o perigo dessa apropriação no quadro da big data, o mesmo Snowden serve de exemplo de como os indivíduos podem exercer o mesmo poder usando precisamente as mesmas ferramentas. Como Manning também ilustra cabalmente.
Percebo muito bem as inquietudes que estão na base da maioria dos estudos de vigilância. Há matérias que devem ser estudadas porque a multiplicação das tecnologias de informação e comunicação levanta questões profundas e de resposta difícil. Mas - creio - não serve de nada estudá-las ou analisá-las num quadro estático. Isso só será útil se tiver em conta o carácter líquido das apropriações sociais das novas tecnologias de informação e comunicação.
Blogue de acompanhamento ao Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação do ISCTE-IUL, anos lectivos 2012-2013. Reflexões sobre os temas tratados. Ligações relevantes e informações complementares.
Mostrar mensagens com a etiqueta Aldous Huxley. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Aldous Huxley. Mostrar todas as mensagens
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
terça-feira, 16 de julho de 2013
O capital social na era das redes sociais online
Confesso que não conhecia em profundidade o conceito de capital social, o que obviamente era uma lacuna importante uma vez que se trata de um conceito central em sociologia. Conhecia o seu sentido superficialmente, mas agora fiquei a conhecer muito melhor todas as suas vertentes (e até as suas várias acepções). E, como é óbvio, há mudanças importantes no tipo de relacionamento social que se estabelece entre os indivíduos que têm impacto sobre a formação de capital social. Impactos qualitativos e quantitativos.
Este é um tema difícil e a impressão que me ficou foi que ainda há muito por estudar. Mas há duas ideias que gostaria de destacar. Primeiro, a participação nas redes sociais online está longe, muito longe de ser uma futilidade. Obviamente, estas são redes diferentes das redes tradicionais. Mas não são menos importantes ou - aquilo que realmente me interessa neste estudo - menos valiosas para os indivíduos. Isso torna-se evidente quando as analisamos usando um prisma diferente daquele a que recorremos para analisar as redes tradicionais. Um "amigo" do Facebook é diferente de um primo ou um irmão. Mas não é necessariamente menos importante do ponto de vista social. E pode ser tão ou mais valioso do ponto de vista social. Uma das razões é porque há aqui dois elementos das redes sociais online que são determinantes em introduzir a diferença: a quantidade incomparavelmente mais abundante de ligações mediadas e o facto de poderem transpor as contingência de espaço e tempo. Portanto, desse ponto de vista, a investigação feita para este trabalho foi frutuosa e serviu os objectivos que tinha inicialmente para ele (em termos de análise do valor social da informação)
Mas há outra ideia que eu também queria destacar e que neste trabalho acabei por apenas aflorar superficialmente: a multiplicação de relações sociais e a transversalidade espacio-temporal das mesmas coloca os indivíduos perante novos tipos de filiações sociais que transcendem as limitações geográficas, nacionais, etárias, familares ou outras. Ou seja, toda aquela sorte de critérios que costumavam sedimentar (e ainda sedimentam) as relações sociais não mediadas. E o que parece - sinceramente - é que é isso mesmo que explica as convulsões sociais que temos vindo a presenciar um pouco por toda a parte (e para as quais se procuram futilmente "razões próximas"). Parece haver aqui um desconforto, um desajustamento, entre a realidade "real" dos indivíduos e a realidade "virtual" das suas relações sociais online. Eu lembro-me de ter achado - com Baudrillard, por exemplo - que havia um desfasamento traumático de base entre aquilo que a sociedade de consumo nos impunha como aspiração social e aquilo que a realidade económica nos permitia. Sempre achei que esse trauma seria o "combustível" de alguma coisa. Pois bem, hoje em dia, o desfasamento traumático entre as limitações da nossa realidade "real" e as potencialidade da nossa realidade "virtual" é ainda maior. Está por provar que seja isso - ou algo parecido com isso - que está na base das convulsões sociais em que vivemos. Mas essa hipótese deve ser estudada (o que, por si só, repare-se, "obriga" a pôr de lado, desde logo, todas as referidas "razões próximas").
No fundo, o que isto significa é que há aqui movimentos tectónicos profundos das formas de sociabilidade dos indivíduos e do tipo de relações sociais que se estabelecem entre eles. Essas mutações profundas têm provavelmente múltiplos efeitos, sendo que um deles pode bem ser a construção de sociedades (ou sociedade) mais justas, mais fraternas e mais solidárias. Isto, obviamente, está para lá do âmbito restrito do trabalho que pretendo fazer neste mestrado, mas, bem vistas as coisas, pode também ser um elemento a ter em conta numa análise do valor social da informação. Não para os indivíduos, mas para a sociedade como um todo. Ou seja, o conceito de capital social é instrumental, mas podemos igualmente analisar as potencialidades comunicativas da sociedade em rede como um elemento de crescimento e amadurecimento das sociedades humanas. O que nos leva em direcção a teorizações como a da "civilização empática" de Rifkin ou a ficções como o "Admirável Mundo Novo" de Huxley.
O trabalho apresentado à cadeira de Redes Sociais Online - que não contém estas reflexões mas suscitou-as - pode ser lido ou descarregado na minha área do academia.edu ou aqui:
sábado, 20 de abril de 2013
"1984" ou "Admirável Mundo Novo"?
Desde que estou a estudar neste mestrado já ouvi falar dezenas de vezes do "1984" de George Orwell. Obviamente a magnitude das transformações em curso, nas nossas formas de comunicar e nas nossas formas de nos relacionarmos socialmente, induz visões utópicas ou distópicas da realidade.
Mas não é isso que me ocupa agora. Esta questão voltou a ocupar-me esta semana à medida que via, à distância e sem o acompanhamento que merece, a forma como as redes sociais e o "user generated-content" foi usado na investigação (e captura) dos suspeitos do antentado de Boston. Isso fez-me lembrar aquela notável frase acima (que li pela primeira vez num trabalho de primeiro semestre de um colega sobre as questões da vigilância), uma desconstrução de Mark Miller sobre a célebre frase de George Orwell (provavelmente uma das frases mais famosas do Mundo): "Big Brother is watching you!".
Como a investigação de Boston demonstra à evidência, o verdadeiro potencial de vigilância não é externo à sociedade; é interno a ela. Não será imposto de fora para dentro; será imposto de dentro para fora! O "Big Brother", realmente, se alguma vez existir (porque às vezes esquecemo-nos que as distopias são tão credíveis como as utopias...), será o conjunto dos cidadãos a controlarem o conjunto dos cidadãos.
Por isso é que eu acho que, se as pessoas que estudam comunicação e sociedade quiserem realmente servir-se de uma distopia, a escolha certa não é o "1984" do George Orwell; é o "Admirável Mundo Novo" do Aldous Huxley (aliás, se quiserem ver o Gattaca, também poderão tirar alguns "ensinamentos" interessantes). A vantagem do "Admirável Mundo Novo" sobre o "1984" é que o segundo é feito de fora para dentro, um escritor olha para a sociedade e recobre-a com a sua visão distópica da sua evolução; enquanto o primeiro é feito de dentro para fora, a distopia é enredada no próprio tecido da sociedade. Talvez seja uma heresia literária, mas o que me parece é que "1984" é um objecto literário enquanto o "Admirável Mundo Novo" é um objecto científico. Onde num existe literatura, no outro existe ciência. Por isso é que o segundo seria uma melhor distopia para invocar num mestrado de comunicação e sociedade.
Aliás, só ao pesquisar para este post é que percebi que Neil Postman, um investigador que já citei por várias vezes no primeiro semestre, já se tinha apercebido há muito desta fundamental diferença entre Huxley e Orwell (ou, mais correctamente, entre o "1984" e o "Admirável Mundo Novo"). Diz ele, em "Amusing Ourselves to Death"
What Orwell feared were those who would ban books. What Huxley feared was that there would be no reason to ban a book, for there would be no one who wanted to read one. Orwell feared those who would deprive us of information. Huxley feared those who would give us so much that we would be reduced to passivity and egotism. Orwell feared that the truth would be concealed from us. Huxley feared the truth would be drowned in a sea of irrelevance. Orwell feared we would become a captive culture. Huxley feared we would become a trivial culture, preoccupied with some equivalent of the feelies, the orgy porgy, and the centrifugal bumblepuppy. As Huxley remarked in Brave New World Revisited, the civil libertarians and rationalists who are ever on the alert to oppose tyranny "failed to take into account man's almost infinite appetite for distractions." In 1984, Orwell added, people are controlled by inflicting pain. In Brave New World, they are controlled by inflicting pleasure. In short, Orwell feared that what we fear will ruin us. Huxley feared that our desire will ruin us.Obviamente, a ideia de pôr os cidadãos (e os seus telemóveis, as suas câmaras, a suas fotografias) à procura de um criminoso, qualquer que ele seja, é muito assustadora. E este caso de Boston merece um estudo profundo (que, não tenho dúvidas, alguém do MIT estará a preparar!) nesse aspecto, pois pode ser um case-study com alguns elementos inéditos.
Mas aquilo se inscreve na sociedade será sempre mais importante do que aquilo que se inscreve sobre ela. É essa a lição que Huxley nos dá e é por isso que as suas "previsões" podem ser muito mais úteis em termos científicos do que as do "1984" de Orwell. Se querem uma distopia (???), escolham esta!
Subscrever:
Mensagens (Atom)