Há poucos dias um video de Maria João Pires, confrontada com um concerto (ou um ensaio, já veremos) para o qual não estava preparada tornou-se viral nas redes sociais.
A história tinha começado num jornal inglês - The Telegraph - sem ser claro se era um acontecimento recente; e era acompanhada de um video - alojado no YouTube - que era um trecho de um documentário mais longo cuja proveniência também não era clara.
Depois de a história se tornar viral nas redes sociais, quase todos os media portugueses - e até alguns espanhóis - pegaram no assunto (como se pode ver aqui) e, ou reproduziram a história ou reproduziram o video. Primeiro facto curioso: quase nenhum acertou nas circunstâncias em que o episódio ocorreu ou quando ocorreu: foi há um ano? foi há 3 anos? Na verdade, se estiver correcto o esclarecimento "histórico" deste post no Facebook, a coisa ocorreu há 15 anos (!!!) e foi num ensaio e não num concerto.
Obviamente que é curioso que os media vão atrás das redes sociais. Isso, em si mesmo, já é motivo de reflexão para quem trabalha nos ou estuda os media. Mas isso, sinceramente, já não é novidade! Tem acontecido recorrentemente a partir do momento em que o media perceberam que as histórias virais das redes sociais lhes podiam dar pageviews. Muitas pageviews!
O que é mais interessante é a forma como este e todos os casos semelhantes questionam o conceito de actualidade das notícias. Como se pode ver no post Facebook acima e nos respectivos comentários, o que está subjacente é uma crítica à "incompetência" dos media para tratarem, profissionalmente esta história (o que significaria, provavelmente, ignorá-la! Precisamente por causa da falta de "actualidade"). Mas eu acho que, a bem do debate, devíamos experimentar voltar a questão do avesso.
Tomemos-me a mim próprio como exemplo: eu não conhecia esta história. Nenhum dos media que li há 15 anos a reproduziu (que eu me lembre) e ninguém me a recontou nos últimos 15 anos. No entanto, eu achei a história fascinante assim que tive conhecimento dela. Por isso a reproduzi. Claro que se pode perguntar, neste ponto, se eu fui verificar a respectiva "actualidade". Mas isso é voltar a entrar na espiral do imperativo de "actualidade" que referi anteriormente.
Voltar a questão do avesso significa precisamente questionar: e se fosse a "actualidade" que estivesse errada? Porque razão é que seguimos o conceito de actualidade ao ponto de acharmos que os media são ridículos quando saem da agenda da "actualidade"?
O "caso" Maria João Pires é apenas mais um que demonstra como actualmente a circulação de informação se faz independentemente do conceito de actualidade. O que obriga a questionar se os media devem, hoje, seguir o imperativo da actualidade. A passagem do analógico para o digital tem, entre outras consequências profundas, essa (que não o é menos): a informação digital está sempre disponível e portanto o "tempo" da respectiva circulação não pode ser controlado, nem pelos media, nem por ninguém. Este video e esta história de Maria João Pires foi viral hoje, aqui, mas nada impede que não volte a reemergir daqui a 5 anos ou daqui a alguns meses noutro "local" diferente ("local" está entre aspas porque no mundo digital não há "locais", mas apesar de tudo ainda há relacionamento sociais online geograficamente fundados, ou seja, as nossas redes sociais ainda tendem a ser predominantemente "locais").
As transformações em curso na distribuição de informação na sociedade em rede geram epifenómenos como o do ressurgimento momentâneo desta história datada da pianista Maria João Pires. Embora isso possa parecer estranho, agarrar-mo-nos a categorias do antigamente - como a de "actualidade" - para explicar os fenómenos, pode gerar mais confusão do que clareza. O conceito de "timeless time" de Castells há muito que explica como e porquê o "tempo" assume contornos diferentes na sociedade em rede mediada por computadores. Ora, se o tempo, pela evolução das formas de comunicar em sociedade, se altera na sua natureza, porque razão não se deveria alterar o conceito de "actualidade" a que os media estão aparentemente tão imperiosamente submetidos? Os media podem ir atrás das histórias virais para conseguirem pageviews. E podem fazê-lo com mais ou menos "elegância". Mas nunca perceberão o que realmente está a acontecer enquanto não perceberem as consequências práticas dos conceitos de "timeless time" e "space of flows". Há "novos media" que - sem os constrangimentos da "actualidade", entre outros - estão a ocupar esse "espaço".
No limite é possível que a aceleração exponencial do tempo gere no final a sua supressão, como propõe Harmut Rosa no livro "Social Acceleration". Um "frenetic standstill" em que tudo acontece a todo o tempo e portanto nada muda na realidade e nada tem um rumo. Ou seja, a pós-história ou o fim da história. Aliás, se pensarmos que - como eu aprendi com Marc Bloch - a história começou com a invenção da escrita (o registo analógico dos acontecimentos), é pelo menos plausível que o registo digital dos acontecimentos altere novamente o conceito de história. Mas isso, é outra discussão... (to be continued).
P.S. Para quem achar que estas ideias são arrojadas, tenho um desafio ainda mais arrojado e - este sim - verdadeiramente assustador! Experimentem reler os parágrafos anteriores e substituir "actualidade" por "veracidade"...
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